Quando lemos
as críticas, notícias ou o próprio programa do espetáculo, fala-se sempre que
“Natalício Cavalo” é uma peça que trata sobre memória e morte. Arrisco dizer
que a trama da peça é mais do que isso: “Natalício Cavalo” fala sobre todos
nós, sobre o homem, a essência de ser humano – e suas expetativas, angústias,
desejos e medos. E é isso que deixa o espetáculo tão bom e profundo: porque
nossas feridas são tocadas delicadamente.
Logo
no começo, por exemplo, somos convidados a – segurando uma folha seca na mão –
lembrar fatos das nossas vidas, em silêncio. “Quem tem menos de 20 anos, pensa
no ano-novo de 2009”, o ator diz. Começo a chorar. Passei parte dessa noite de
réveillon no hospital, onde minha avó estava internada sob um estado terminal
devido a um câncer que começara na bexiga, mas que naquela altura já havia se
espalhado para outras partes do corpo. Foi o ano-novo mais triste da minha
curta vida, pois sabia que uma das mulheres que mais amava tinha poucos dias de
vida. De fato, minha avó morreu no dia 02 de janeiro de 2010 e até hoje sinto
sua falta.
Mas o fato é
que logo naquele instante, no escuro e mexendo a folha seca, a peça já havia
mexido comigo. Singelo, Natalício já havia me conquistado. Quantos mais ele já
teria conquistado antes mesmo de começar a peça – antes mesmo do seu
nascimento?
Depois, o que
se vê nos 90 minutos seguintes é o carimbo da Cia Rústica e de Patrícia
Fagundes: trabalho árduo, impecáveis partituras corporais, trilha sonora ao vivo
e imagens projetadas. Enquanto tudo isso acontece, a vida de Natalício Cavalo é
contada com tantos detalhes e pormenores que ficamos em dúvida se é um
personagem ficcional ou um personagem factual, perdido nas memórias esquecidas
das tradições familiares.
Não sei se foi
instintivo (e, portanto, coincidência) ou inspiração mesmo, mas não pude deixar
de notar algumas semelhanças com o livro “O Anjo e o Resto de Nós”, da
escritora gaúcha Letícia Wierchowski. Além do universo do pampa e da mãe que
morre no parto, Natalício se parece muito com Bento Vendaval, o anti-herói do
livro de Letícia, que “tinha por lema que a vida era curta e pouca e que tinha
de ser vivida aos goles, e goles grandes”. Ambos têm uma vida desregrada e são
tão conquistadores que acabam se perdendo nos jogos de amor: Natalício por ter
um filho em cada esquina, Bento por envolver-se com três irmãs ao mesmo tempo
sem que nenhuma soubesse da outra.
Esteticamente,
a Cia Rústica não podia estar em melhor consonância de nome com o espetáculo. O
cenário é rústico, construído apenas com caixas de madeira, malotes e malas
escuras, que se transformam ao longo do espetáculo – ora são bancos de cabaré,
ora balcão de rádio, peças de rodeio e até – vejam só! – cavalos. E os atores,
tão familiares com os objetos, brincam, entrando e saindo de caixas, pulando de
uma para outra, carregando malas de todas as maneiras. Aliás, os próprios
personagens que interpretam também mudam todo o tempo, proporcionando um
dinamismo surpreendente. O próprio Natalício é interpretado por três atores
diferentes. São três Natalícios diferentes, à medida que este envelhece. Mais
uma vez, falando de todos nós, do envelhecimento inevitável e das mudanças que
todos sofremos.
De destaques
específicos, a projeção dos trilhos de trem, a cena da gineteada e a cena em
que Natalício dança com a morte (inevitável não pensar em José Saramago e em
seu livro “As Intermitências da Morte”) e para o ator Heinz Limaverde, que
brilha mesmo em silêncio, tamanha sua presença cênica. Definitivamente, sou fã
desse cara!
Por fim,
Natalício Cavalo é esse espetáculo que incomoda, que ficamos pensando por dias
e dias, pois falam sobre a gente, mexem com a gente. Natalício é a gente.
“Quando saímos do teatro já somos mais velhos, já estamos mais perto da morte”,
o ator fala. Eu digo que quando saí do teatro já era outro, já podia ser
interpretado por um outro ator.
Em tempo: Natalício tem seu último final de semana no Teatro de Câmara Túlio Piva, com entrada franca. Sexta e sábado às 21h e domingo às 20h. Depois, o espetáculo seguirá para o Teatro Museu do Trabalho.